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A Metamorfose de Kafka metamorfoseada

"Certo dia, ao acordar de sonhos agitados, ainda na cama, Gregor Samsa descobriu que tinha se transformado num inseto monstruoso."

Com essa frase, traduzido por Caio Pereira em um box que comprei há muitos anos, Kafka inicia A Metamorfose. Franz Kafka é um dos meus autores favoritos e um dos que mais me inspiram. A Metamorfose pode não ser o meu favorito dele (O Processo me impactou mais), mas A Metamorfose é o seu livro mais famoso. Não à toa quando se pensa em Kafka, hoje, a primeira coisa que se lembra é de Gregor Samsa metamorfoseado em um inseto. Geralmente uma barata, mesmo que o texto nunca deixe explícito qual exatamente é o inseto.

Essa semana, sem querer, acabei lendo e assistindo duas obras que se relacionam com a história de Gregor Samsa. Ambas as histórias, bem diferentes entre si, mostram caminhos diferentes ao que Kafka enveredou quando escreveu a obra. Outros autores foram influenciados por ele e escreveram suas próprias versões. Histórias que me fizeram refletir sobre ramificações que se formam de outras histórias, quando elas se tornam marcantes. Intertextualidade. Caminhos diferentes, muito diferentes, que partem de um ponto só: o conto de Kafka.

Quero discorrer um pouco sobre as duas obras e, no fim, falar um pouco sobre referências.

A primeira obra é um conto de Haruki Murakami chamado, veja só, "Gregor Samsa Apaixonado". Está na coletânea de contos "Homens Sem Mulheres". A segunda obra, um filme chamado "Bondage Ecstasy" um pinku eiga, um filme homoerótico japonês sobre sadomasoquismo e insetos.

Gregor Samsa Apaixonado

Capa do livro Homens Sem Mulheres, que contem o conto Gregor Samsa Apaixonado.
(Descrição: capa do livro Homens Sem Mulheres. É uma capa com cores predominantes preto e rosa. No centro, uns símbolos abstratos com círculos e linhas interligando-os. Uma faixa rosa que cobre a parte de cima do livro com o título e o nome do autor. E um pouco mais acima, correndo também para a lateral da capa, diversas esferas brancas e rosas no fundo preto.)


O conto de Haruki Murakami, publicado no Brasil na coletânea Homens Sem Mulheres, pela Alfaguara, parte de um princípio básico; se em A Metamorfose Gregor Samsa se vê transformado em um inseto monstruoso, em Gregor Samsa Apaixonado, um inseto monstruoso se vê metamorfoseado em Gregor Samsa. Sozinho, abandonado na casa, ele não sabe de nada do que ocorre no mundo, mal compreende necessidades fisiológicas que não competem a um inseto, mal sabe usar pernas, principalmente para subir e descer escadas. Então, no avançar do conto, uma chaveira corcunda bate na porta pois um trabalho foi oferecido a ela, arrumar a fechadura do quarto em que Gregor Samsa estava preso. Ele não entende, a leva lá, e no caminho, se apaixona.

Se Kafka trazia uma das leituras de A Metamorfose em algo externo, uma crítica mais prática (Gregor Samsa agora é um inseto monstruoso e não pode trabalhar; isso gera um caos e repulsa de sua família e de seu chefe. No fim, Gregor Samsa é apenas uma mão de obra e, agora que não pode mais trabalhar, pouco serve.), Murakami dirige seu texto para algo mais interno, o fato de Gregor Samsa agora não saber de nada, mas sentir coisas. Há apenas instinto naquela casca humana, e esse instinto mostra que a chaveira é interessante. É uma mulher para ser amada.

Essas diferenças bilaterais permeiam todo o texto do Murakami. Se Kafka descreve a transformação no inseto de uma maneira direta, mostrando assim os problemas que Gregor Samsa vai precisar enfrentar agora que é um monstro, Murakami delineia em seu texto diversas descrições espaçadas, que atentam para a fragilidade do ser humano.

No fim, o texto de Murakami é sobre essa fragilidade do corpo e do emocional. Do sentir. O inseto se apaixona, mas ele não sabe o que é isso. Ele tem um corpo frágil e se vê fragilizado diante de uma pessoa que o atrai. A chaveira conversa com ele durante o conto, ela se sente incomodada com seu olhar, acredita que é uma espécie de repulsa por ela ser corcunda. Ela é frágil como ele, mas se faz de forte diante de um mundo que não a trata bem. Ela tem a couraça que Samsa sente falta de quando era um inseto. Mas uma couraça sentimental, filosófica. Ela é corajosa e ele, usando apenas um roupão, está totalmente desnudado diante dela.

Enfim, eu gosto de como esse conto se referencia a Kafka através dos paralelos. Era como se Murakami estivesse mais interessado em fazer uma releitura de A Metamorfose, mas guiando-se pelo lado oposto. Trabalhando totalmente nos opostos. Fazendo da transformação reversa como chave, como símbolo, ele constrói esse texto inteiro na base da reversão de um conto já muito estabelecido e muito lido na literatura mundial.

Bondage Ecstasy

Cena do filme Bondage Ecstasy
(Descrição: em primeiro plano um homem sob uma luz rosada. No fundo, de frente para ele, um homem que vemos apenas a silhueta. Ele usa um terno e está contra a luz, que constrói uma aura azulada à sua volta.)

Em 1989, um diretor chamado Hisayasu Sato, dirigiu um filme que usava como base o livro de Kafka, mas para discutir desejo num mundo extremamente conservador e capitalista. Se Murakami usa como base a novela de Kafka para discorrer sobre a sensibilidade do amor instintivo, Sato está mais preocupado em trabalhar desejo e sexo.

Bondage Ecstasy é um filme homoerótico de sadomasoquismo que conta a história desse rapaz, que trabalha em uma empresa onde ele é tratado de maneira péssima pelos outros funcionários e pelo seu chefe. Ele não tem coragem de fazer qualquer coisa diante disso. Muito introspectivo, completamente desprovido de ações, ele se envolve com um antigo amigo do tempo em que praticava esgrima. Deseja estar com ele, mas ele namora uma mulher. Passivo, ele não pode pedir para o amigo ficar apenas com ele. Todas as noites, antes de dormir, ele lê Kafka e sonha que é um inseto que entra no corpo das pessoas, dessa forma colocando seus desejos sexuais para fora.

Diante desse capitalismo perverso, o personagem principal do filme e Gregor Samsa tem algo em comum: eles são passivos diante do que fazem. Se Samsa precisa sustentar a família, sendo praticamente descartado quando perde a utilidade, o protagonista não pode simplesmente realizar seus desejos. Ele quer submeter sexualmente seus colegas de trabalho, quer se relacionar com o amigo. O mundo em que ele vive é claustrofóbico e o proíbe de se expressar. Diferente de Samsa, transformar-se

num inseto monstruoso é libertador. Ele pode voar por aí e praticar sadomasoquismo com quem ele quiser.

Transformado em inseto, ele toma o corpo de um colega de trabalho e submete um homem que iria tomar um golpe. Dentro desse homem, ele vai até um clube erótico e pratica sadomasoquismo com o homem que o importunava na adolescência. Através desses sonhos intranquilos, ele realiza seus desejos sexuais com todos que ele quer.

Se Sato usa um personagem com dilemas parecidos com o de Gregor Samsa, diferente de Murakami, que gosta de trabalhar no campo da reversão, Sato usa esses dilemas para desenvolver outros. Para construir uma camada a mais que Kafka não faria.

Kafka Metamorfoseado

Kafka é um dos autores mais referenciados no mundo. Seu estilo de escrita são únicos, a maneira com que trabalha o surrealismo, as críticas em seu texto. Um autor pouco prolífico, mas que marcou a literatura mundial.

É inegável que nós, quando escrevemos, partimos de um princípio. Aquela máxima "nada se cria, tudo se copia" é de certa forma correta. Não nascemos em cavernas. Num mundo globalizado em que vivemos, é impossível não ter lido, assistido ou ter experienciado qualquer coisa. Principalmente para nós, que escrevemos. Em algum momento do nosso passado, houve um estalo, um: "e se eu escrevesse essa ideia que está na minha cabeça?". Mas essa ideia partiu de algum lugar. Não sei, talvez você tenha lido algo que não curtiu o final e resolveu escrever em cima disso? Um certo tropo específico que você gosta muito e viu em algum filme e gostou da ideia de trabalhar em cima dele? As referências são muitas. Não à toa hoje vemos sites de fanfic grandes, autores que começaram através dela, releituras se tornando clássicos.

Estamos no mundo da reprodutibilidade. Não existe essa (que é bem comum de ver, mais do que deveria) de: minha história é completamente original, eu não me inspiro em nada. O correto é entendermos sobre o que nos inspira. Eu me lembrei de um tempo atrás uma pessoa falando que escreve mas não lê nada há muitos anos porque não quer se sentir influenciada por nada. Esse é o maior erro que se pode cometer hoje em dia. Como eu falei, não vivemos mais em cavernas. O que devemos fazer é abraçar de vez o que nos inspira. Nossos autores favoritos, nossos filmes preferidos, tudo. Não precisamos fazer um copia e cola, apenas entender nossas referências e transformá-las.

Metamorfoseá-las.

Murakami já fez referências de Kafka em diversos livros seus. É um dos seus autores favoritos. Em Gregor Samsa Apaixonado, ele abraça de vez a referência e constrói sua releitura. Sato, no filme, chega a mostrar o rosto de Franz Kafka na capa do livro que o protagonista lê. Referências são homenagens. Não é preciso abandoná-las por completo, largar a mão dos seus autores inspiradores e fingir que tudo o que você escreve é original. É compreender o que te faz criar uma história, abraçar e fazê-la ser outra coisa. É, através dessas histórias, ter seus próprios sonhos intranquilos.

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