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O que as adaptações deveriam ser

 

O motivo de eu resolver escrever esse texto.
(Descrição da imagem: cartaz da série Percy Jackson and the Olympians, da Disney+. Percy,  menino branco, adolescente, está com um joelho no chão, de perfil, segurando uma espada dourada que brilha levemente. Atrás dele, as ondas se formam num arco. A foto está levemente inclinada.)

Ano passado, na bienal do livro, resolvi ir na palestra com Ana Paula Maia porque é uma autora que eu gosto muito e estava com vontade de vê-la autografando meu "Enterre Seus Mortos". Além disso, havia algumas pessoas interessantes na mesma palestra, entre elas, Rodrigo Teixeira, produtor cinematográfico. O tema da palestra era sobre adaptações: Rodrigo Teixeira tinha acabado de produzir o filme de "Enterre Seus Mortos", que será lançado ainda esse ano, com Selton Mello no papel principal.

Dentre tantas conversas, Ana Paula Maia comentou que houveram sim mudanças na adaptação, um personagem que morre no filme não morre no livro, personagem inclusive que ela diz ser relevante para as continuações daquele livro em específico. Não foi um comentário chateado nem nada, apenas um comentário rápido, em meio a risos. Nesse momento, fiquei curioso, pensando que personagem seria, já que não tem muitos personagens nesse livro em específico.

"Enterre Seus Mortos" é o meu livro favorito da autora. Para além disso, o diretor que Rodrigo Teixeira contratou para dirigir o filme, Marco Dutra, é um diretor que eu gosto. Vai ser um bom filme de terror. Fiquei empolgado. Para além de confiar na equipe, fiquei curioso em ver as mudanças com relação ao livro. Não com aquele passo atrás que geralmente fãs de livros costumam ter, mas uma verdadeira curiosidade sobre qual personagem morreria, quais mudanças estariam na tela, quais coisas permaneceriam.

Eu entendo o que é adaptação. Volta e meia penso nesse tipo de coisa.

Percy Jackson e o checklist

Percy Jackson é um livro que eu gosto, de verdade. Li a saga tinha meus quatorze anos e devorei. Lia praticamente um por dia. Ao longo da vida, sempre voltei para a história, e reli pela última vez em 2021 porque estava com saudades do mundo e dos personagens (estava decidido a ler as outras sagas correlacionadas, que nunca conseguir ir em frente, mas falhei, e isso não vem ao caso). Enfim, em algum momento nesses anos a Disney decidiu produzir a série e todo mundo ficou empolgado, afinal, o filme de 2010 foi uma péssima adaptação, não teve nada que tinha nos livros, parecia outra história. Eu fiquei com um pé atrás, mesmo sabendo da participação ativa do autor na série. Fiquei porque era Disney, né, e faz um bocado de anos que eles não produzem qualquer coisa com um mínimo de qualidade. A série lançou, vai lançar o último episódio essa semana e, bom, infelizmente eu estava certo. Mas não da maneira que eu esperava.

A série é ruim. Muito ruim. E parte disso está no fato de ela formar-se através de um estranho checklist de acontecimentos do livro. Se o filme de 2010 fugiu de ser uma adaptação fiel, mudando vilões, acontecimentos relevantes (para o próprio filme e para a saga), até mesmo a cena em seu clímax, a série, com o aval do autor, optou por adaptar diversas cenas do livro. Ah, mas tem a luta contra a quimera! Tem Ares e Hefesto! Cronos! Sim, tem tudo isso. O que faltou é saber trazer alma para isso.

Diversas cenas na série só acontecem sem qualquer construção de maravilhamento, de tensão. Não há surpresas, mas também não tem qualquer visual imaginativo. As cenas estão lá, mas é tudo tão blasè que se não estivesse não ia fazer diferença. Aquela cena que você se empolga, se emociona, curte quando lia o livro? Adaptado de maneira a não te fazer sentir qualquer coisa. Se o menino que faz o Percy subisse num palco e dissesse "agora derrotamos a Medusa" e saísse e pulasse para a próxima cena seria um bocado mais interessante.

Não é o único problema da série, mas é o mais perceptivo. Quer dizer, é uma série fiel, mas a que custo? Eu acho o filme de 2010 melhor sim, por mais estranho que isso possa parecer, porque ele pelo menos tem alma. É esquisito por si próprio, um pouco histriônico, tem alma. Não a toa diversas pessoas conheceram os livros pelo filme apenas para depois passar a odiar o filme porque não tem nada a ver com os livros. Agora temos a série, que é uma adaptação fiel mas parece uma sombra.

Adaptações devem ser uma coisa nova

Penso muito em adaptações. Quer dizer, hoje em dia quase tudo é, de certa forma. Quadrinhos, livros, jogos. Algumas funcionam, outras não. E uma questão que as pessoas costumam pensar muito quando veem a adaptação de suas obras preferidas é como aquilo vai ser adaptado. Suas cenas favoritas. Se vai ser fiel ou não.

Bom, com Percy Jackson estamos vendo que fidelidade não é o melhor caminho. Livros são uma mídia que costumam ser lidos de uma forma. Filmes são outros. Séries, uma terceira maneira. É comum a qualidade ser medida pela fidelidade. Essa é uma maneira de diminuir o que você está assistindo, aquela mídia, aquela arte, em detrimento de outra, primária, melhor. Não é melhor. Só é diferente. E deve ser feita de maneira diferente.

A série do Percy Jackson é fiel por ter todas as cenas acontecendo ali, sem qualquer construção de qualquer sentimento (culpa da direção canhestra), então ela passa a não ser fiel. Não existe o maravilhamento de encontrar esse mundo novo que existe nos livros. Logo, a fidelidade está apenas na camada mais rasa, na repetição de cenas que já conhecemos.

Adaptações precisam ser algo novo porque apenas assim eles fazem sentido existir. Aquela história já foi contada antes, então recontar a história não deve ser o único propósito para aquilo existir. É preciso ter uma alternativa a recontar a história, uma ideia para adicionar aquilo, uma percepção nova. Apenas assim você vai saber cortar algo ou adicionar outra.

Death Note, por exemplo, está sendo revisitado atualmente. Eu vi esse filme tem muito tempo, lembro que não gostei, mas não por ser uma adaptação infiel. É um filme resposta ao mangá, uma maneira de trazer um certo realismo para a história de um homem medíocre. O filme trata Light, por exemplo, da maneira que ele realmente é: um homem patético.

Speed Racer é uma das minhas adaptações favoritas. Sério, vi o anime muito pequeno, lembro pouco, mas o que o torna de fato interessante a adaptação live-action não é a fidelidade a história, mas sim a ação vertiginosa, o visual criativo e cartunesco. Há alma ali, para além de uma história instigante.

Peter Jackson tirou o péssimo Tom Bombadil para tornar o filme de Senhor dos Anéis mais dinâmico, deixou o visual impressionante para tornar plausível a fantasia da obra. Não é um filme tão fiel, propriamente dito, mas os grandes momentos estão lá e o respeito a obra também.

O Iluminado, de Kubrick, mudou a história toda e deixou Stephen King puto. O filme é melhor que o livro.

Nenhuma obra precisa ser tratada como intocável. A partir do momento em que ela vai ser adaptada, ela precisa respeitar o material base e compreender que esse respeito não vem de repetir tudo o que acontece na outra obra, igualzinho. Esse respeito vem de entendê-la o suficiente para saber modificá-la por completo.

Opinião de autor

Muitos casos de má adaptação se tornam famosos por causa dos seus escritores. Percy Jackson, o próprio Rick Riordan enviou uma carta para produtora quando leu o roteiro do filme de 2010 e deu dicas do que poderiam mudar para que fosse melhor (não foi ouvido). Stephen King odeia tanto o filme de Kubrick que refez nos anos 90 O Iluminado de maneira mais fiel, e dizem ser uma péssima adaptação. O autor não sabe de nada de adaptação porque ele não entende da mídia. Seu trabalho é escrever o livro. Não produzir a série.

Eu sou escritor e sei que todo escritor sonha em ver uma obra sua adaptada. Não vou mentir que não quero, apesar de não me importar tanto (e sei que as possibilidades são quase zero). Entretanto, se uma obra minha tiver de ser adaptada como Percy Jackson está sendo, da maneira mais pau mole existente, então preferia não ter nada meu em outra mídia.

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