Não é o protagonista, mas ilustra bem o que quero dizer
(Descrição da imagem: Stannis Baratheon, da série Game of Thrones, um homem de meia idade, um pouco calvo, com cabelo e barba cinzentas. Usa uma armadura com um símbolo de um alce dentro de um coração em chamas no peito. Tem o olhar sério e, desfocado lá trás, alguns soldados portam armas.)
É sempre gostoso pegar um livro novo, sentir o seu cheirinho e penetrar naquele universo com personagens agradáveis. Gente com quem você vai se importar. Que vai te inspirar ou vai te fazer, se não querer ser aquela pessoa, tê-la como amiga.
É muito comum, na literatura, o pensamento de que seu protagonista precisa ser uma pessoa agradável porque isso gera empatia. Se as pessoas se importam com seu protagonista, é muito mais fácil para ela continuar aquela leitura até o fim e/ou se importar com o caminho que está sendo percorrido. Quanto mais o seu leitor se importar com as pessoas que estão no centro daquela história, melhor algumas cenas tendem a funcionar, cenas emotivas, sentimentais, de ação, etc.
Chegamos ao ponto, até, de hoje em dia o tropo da redenção do vilão, do vilão com passado triste, se tornar comum. E não vejo isso como algo ruim, longe disso, mas serve apenas para ilustrar essa ideia de que gerar empatia pelos personagens é uma ferramenta muito funcional e talvez a mais comum que se vê por aí.
Mas há alguns dias eu estava escrevendo uma nova história com uma nova protagonista e refleti que ela não é agradável. Que não é uma pessoa que você gostaria de ter como amiga. E, mesmo assim, ela me soou interessante. Fadada ao fracasso? Talvez, mas isso me fez refletir sobre muitas coisas na literatura, de maneira geral.
Bentinho é o pai dos protagonistas desagradáveis
(Descrição de imagem: imagem da minissérie Capitu com o ator Michel Melamed, um homem branco na casa dos 30 anos com uma maquiagem no rosto lhe deixando pálido, roupas típicas do século XIX, uma cartola e cabelos cacheados escuros saindo por baixo. Ele carrega uma expressão de desagrado.)
Existem inúmeros personagens na literatura que não são agradáveis. Gente que você acompanha a história inteira e se envolve com ela, mas não consegue gostar de verdade deles. Então porque você segue em frente? A resposta, imagino, é uma só, e bem simples:
Porque, apesar de você não gostar daquela pessoa, ela é interessante. Ao menos o suficiente para te deixar uma marca, seja de curiosidade ou de raiva.
Bentinho conta a história dele com a Capitu e ele passa o livro inteiro defendendo seu próprio ponto de vista, suas paranoias, seus ciúmes. Ele narra a sua história de uma maneira que cabe ao leitor acreditar ou não no que está sendo dito porque ele é um personagem complexo, interessante o suficiente para prender sua atenção. Você termina o livro e percebe que não sabe bem no que acreditar, que tudo aquilo pode ser uma defesa extensa do motivo de Bentinho ter feito tudo do jeito que fez, e claro, você pode até ficar com pena e ter empatia por ele, mas você não está lendo Dom Casmurro porque ele é a empatia em pessoa. Ele tem atos desagradáveis durante todo o livro. Acontece.
Stannis Baratheon, nas Crônicas de Gelo e Fogo é um dos personagens mais interessantes que o Martin escreveu. Primeiro porque ele não lhe deu um ponto de vista, o que faz suas escolhas e suas atitudes serem vistas por outros personagens, não saídas da sua psiquê. Ele não é carismático e a gente, como leitor, não tem nem seu próprio direito de resposta (como Bentinho tem) para se defender. Todos os personagens que o cercam e o leitor também é levado a vê-lo como uma pessoa ruim, não malvada, mas completamente antipática. Mas o seu núcleo é chato por isso? Podemos preferir o núcleo de Daenerys e seus dragões no livro já que ela é muito mais "gostável", ou Arya porque é muito fácil gerar empatia quando vemos crianças sofrendo, mas Stannis Baratheon é um dos núcleos mais instigantes. Seja porque ele é um personagem muito ativo, ou seja, toma atitudes que mudam o rumo da história inteira, seja porque sua psiquê é algo que não tivemos a chance de estudar por completo.
(É sério, os melhores textos que eu já li sobre As Crônicas de Gelo e Fogo pela internet envolvem Stannis Baratheon, de alguma maneira).
Mesmo assim, tu não vai ouvir uma pessoa dizendo que Stannis é o seu personagem favorito nessa série. Ele não é feito para isso.
Um caso a parte, mas não posso deixar de falar de Roland Deschain
(Descrição de imagem: ilustração em preto e branco de Roland Deschain, protagonista da série Torre Negra de Stephen King. É um homem cujo rosto não podemos ver direito por conta da sombra do seu chapéu de aba larga. Está com os braços cruzados e cada mão carrega uma pistola. Usa um sobretudo. Ele está nas sombras.)
É claro que para escrever um personagem desagradável é preciso um desenvolvimento maior dele porque é preciso fazer o leitor querer acompanhar ele também. Seja um mistério envolvendo-o, seja por um passado triste que o deixou daquele jeito (e que aí entra em todo aquele esquema de redenção, o que muda um pouco o tropo que discuto).
Eles podem se tornar agradáveis também, conforme a história se desenvolve. Talvez esse possa ser o arco de personagem deles. Enfim, possibilidades inúmeras.
Quis escrever esse texto porque eu não vejo muitos protagonistas desse tipo por aí. Antigamente parecia mais fácil encontrar, me soa quase um tropo morto. E não é uma nostalgia, um pensamento de "antigamente era melhor", é apenas um pensamento solto de que esse tipo de tropo poderia voltar. Existem exemplos por aí de que ele pode funcionar muito bem, e exemplos de literatura contemporânea (Stannis Baratheon, Roland Deschain, a Amy de Garota Exemplar). É uma maneira diferente de desenvolver personagens também, fugindo um pouco do que estamos sempre buscando: a empatia do público.
Ou você pode esquecer esse motivo que falei no parágrafo anterior e acreditar que escrevi isso tudo para defender minha impaciente e desagradável protagonista da minha nova história.
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