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Dois Caminhos Diferentes Para a Fantasia Sombria

 Não é difícil entender o motivo do Grimdark (ou fantasia sombria) ter se tornado tão desinteressante nos últimos anos. Surgindo inicialmente como uma resposta para a fantasia épica à la Senhor dos Anéis, a fantasia sombria veio para acabar com a dualidade do bem/mal, certo/errado, criando apenas áreas cinzentas em mundos fantásticos cada vez mais... sombrios.

E isso é bom. Quer dizer, a ideia de gerar mundo mais sombrios e perigosos para seus personagens que agora não eram heróis tão definidos, mas tendiam a ser heróis por ocasião. Ou às vezes nem isso.

Não demorou muito para a fantasia sombria descambar para o que há de pior na fantasia. Existe uma piadinha ácida que diz que para uma fantasia medieval existir tem que ter dragões e estupros. Basicamente as histórias pararam de ter personagens cinzentos sobrevivendo em mundos complicados para ser apenas desculpa para violência exacerbada e, ouso dizer, pervertida e perversa, por parte de certos autores. Eu não quero entrar na discussão de como esse foi um gênero absorvido por grupos de autores retrógrados, misóginos e etc, mas basicamente o gênero "fantasia sombria" foi transformado em uma desculpa para criar histórias com cada vez mais violência, sem qualquer contraponto, sem qualquer crítica quanto ao jeito de ser. E quando um gênero vive apenas disso, ele se torna essa coisa.

Vamos a alguns exemplos: A trilogia dos espinhos, de Mark Lawrence, é o exemplo ideal disso que eu tô falando. Ele vem com a ideia de escrever uma fantasia onde o protagonista é um monstro, um psicopata que está ali para tomar tudo o que ele perdeu na infância, comandando um grupo de mercenários tão ruins quanto ele. Nos primeiros capítulos ele tortura e se orgulha de ter começado a matar, pilhar e estuprar logo cedo. Não há nada que gere identificação ao personagem, não existe nem uma "redenção" do protagonista (até onde eu li, que foi 2/3 da trilogia) e não parecia ser essa a intenção da história. Ela é violenta por si só. Desagradável. É desse jeito apenas porque seu autor acredita que "é cool ser desse jeito".

Outro exemplo que me vem a cabeça nesse momento é The Witcher. Sendo um pouco melhor que o livro do Mark Lawrence, trabalha até bem o mundo sombrio usando elementos da fantasia épica clássica. Só que ainda é um livro escrito por um homem branco cis que, no topo do seu privilégio, cria certas situações apenas porque sim, sem refletir muito sobre elas. Existe uma cena no segundo livro, A Espada do Destino, em que o personagem Jaskier está preso com Geralt e Yennefer e alguns outros personagens, e ele brinca e faz piadas com a possibilidade da feiticeira ser estuprada naquela noite. Não é uma cena em que a possibilidade é tratada com um desespero. O Jaskier é, até então, o alívio cômico do livro. É uma cena clara onde a piada é o estupro.

Uau. É fantasia sombria. É isso que se espera, não?

Eu não acredito nisso. Se por um lado existem histórias que tratam a violência de maneira tão fetichizada nesse subgênero, por outro, você encontra autores que conseguem trabalhar o gênero para longe disso. Vamos ser maduros, não há mais necessidade de ter uma resposta para fantasia épica, não para os dias de hoje. Mas há meios de se ter uma resposta para a própria fantasia sombria do jeito que ela é disseminada nos dias de hoje.

Existem dois livros hoje que eu li ano passado de autores nacionais que trabalham o lado sombrio da fantasia de uma maneira muito mais profunda e inteligente que Mark Lawrence, autor publicado em vários países, inclusive. O que eu quero mostrar nesse texto é que há sim meios de se fazer uma fantasia sombria sem descambar para a violência exagerada, para as violações e para personagens que só são monstruosos porque é legal escrever personagens monstruosos. Há outros caminhos para a fantasia sombria. Muitos outros.

As Ruínas de Noltora, por M. P. Neves, Um Bom Exemplo de Como Trabalhar Faces do Horror na Fantasia Épica

Essa capa é bem instigante e estranhamente combina com todo o clima do livro
(Descrição: um homem com roupas brancas semelhantes a de um nobre e uma capa esvoaçante porta uma máscara demoníaca no rosto, com chifres e dourada. Embaixo dele e ao fundo, criaturas humanóides se mantém de pé. Ao fundo, uma construção com um estandarte na ponta.)

As fundações da fantasia sombria, como eu disse, foi a fantasia épica mais clássica possível. Quer dizer, na própria fantasia épica existem massas de soldados digladiando e morrendo, mas apenas na fantasia sombria essas mortes contém sangue de verdade, corpos mutilados e sofrimento verdadeiro. É mais ou menos o que acontece aqui, nesse livro do M. P. Neves.

Se por um lado temos um Deus-Rei de um império comandando tropas enquanto é idolatrado pelos seus súditos tentando defendê-los de horrores marítimos e desconhecidos, pelo outro temos Moira, uma jovem de clãs bárbaros que tem toda a sua família morta e que, a partir disso, ela dispara numa espiral de vingança, juntando-se com necromantes para conseguir conquistar os seus objetivos.

Simples, de certa forma, comum, até. Só que não é simples assim.

M. P. Neves constrói um mistério intricado e que nos deixa envolvido. Ok. Ele cria uma personagem interessantíssima em Moira, a gente sente a dor dela e acompanha o seu crescimento na arte da necromancia. Ok. E, para mim, a cereja do bolo, é a construção do horror em cima da fantasia. É uma história de combates e grandes cenas de ação, mas ele não descamba para a fantasia épica porque ele assume essa identidade utilizando-se de elementos do terror.

À primeira vista, a gente pode até pensar que é pelas criaturas misteriosas que avançam pelo mar para destruir o império de Var Khalad. Tem um paralelo lovecraftiano aí, seja nas criaturas desconhecidas (e no que elas exatamente são), até no fato de elas serem seres marinhos, com tentáculos, cascos e garras de caranguejo. M. P. Neves trabalha também com o horror corporal nas suas descrições. Seja nas criaturas híbridas, cada vez mais presentes na história, seja na maneira com que a magia nesse mundo funciona.

De um lado, a taumaturgia é uma magia complexa que se utiliza de humores. Fleuma, bile amarela, negra, sangue. Elas criam poderes e também certas modificações corporais. Do outro, a necromancia usa corpos e almas humanas, coisas sujas, vazias e apodrecidas. A grande sacada nessa história toda são as descrições do autor que faz a gente se arrepiar e sentir um embrulho no estômago quando tudo isso vêm à tona.

O corpo, nesses livros, poucos significa. Ele é mais uma ferramenta a ser utilizada para conquistar objetivos. Vai além da massa de soldados sendo sacrificada nos portões de Minas Tirith. Aqui, corpos mortos levantam e atacam porque em seus órgãos internos foram colocados necrológios; ferramentas para fazê-los se erguer e tomar uma atitude violenta. Ou um morto solidificando seus ossos em aço, tornando impossível sua decapitação, mesmo com o seu algoz serrando seu pescoço com a espada.

É uma violência que não existe de graça, pra chocar. Ela existe porque o mundo é assim. Nesse caso aqui, funciona porque faz sentido, e toda a construção do mundo trabalha num conhecimento maior do que é ser uma fantasia sombria do que parte de livros conhecidos por aí. E, apesar disso, ela também é uma violência construída em cima do horror corporal e do gore, e não pelo lado pervertido da coisa. O que acontece aqui é que M. P. Neves usa o terror em diversas camadas para construir uma fantasia épica, numa espécie de simbiose entre ambos os gêneros.

Senhores de Sombra e Prata, De Arthur Malvavisco, e o Sombrio Que Existe Dentro De Cada Um

Quando li o primeiro, ainda estava na capa antiga, mas adoro essa capa da Corvus
(Descrição: uma lebre no centro da capa de fundo arroxeado. Elementos diversos à volta da lebre e do tiítulo: uma pena, uma tesoura de médico antiga, uma pena, flores, um bisturi, uma garrafa)

Em Solária, uma catástrofe se abate sobre o mundo sempre no fim das décadas. Além disso, é um mundo regado por guerras; os humanos se defendem das constantes invasões dos ilurianos, seres ferais de outro mundo. Um mundo difícil de se viver, com incertezas para todos os lados. Mais perigoso ainda para Andras, que esconde sua capacidade de ouvir a canção da floresta e como isso pode causar problemas para ele dentro dos muros de Rosseles.

Tá aí, prato cheio para construir uma fantasia sombria. Guerra, povos violentos, catástrofe e não um, mas dois personagens principais à margem da sociedade: Andras, um médico cientista sem muito valor para aquela sociedade e Aeselir, um iluriano fugitivo depois de uma década de torturas. Como se não bastasse esses elementos, o que Arthur Malvavisco resolve desenvolver aqui é um bocado mais complexo: ele parte para uma narrativa mais introspectiva, onde o "sombrio" está nos próprios personagens.

Ora, é muito fácil desenvolver violência incansável e gore interminável, difícil mesmo é fazer todos esses elementos não serem tão pesados quanto o sofrimento de um personagem. É difícil ler aquelas páginas sem sentir empatia por Andras, o cientista inocente, e Aeselir, um príncipe caído em eterno sofrimento. E a relação dos dois, que as poucos se transforma em um laço mágico e amoroso.

Arthur parte do pressuposto de que a fantasia sombria não significa um mundo podre apenas, mas como seus personagens aprendem a lidar com essa sociedade sombria. Como se tornam, se não heróis, talvez sobreviventes nessas realidades através da sua própria bússola moral.

Esse livro é um prato cheio para quem gosta de acompanhar personagens complexos. Aeselir tem bastante desenvolvimento, um dos melhores que li em fantasia ultimamente, principalmente no segundo livro, Príncipe Partido, e nele é fácil perceber esses temas na escrita do autor. Conhecemos aqui como um homem violento, príncipe e general, e sua decadência até o fundo do poço, sua relutância para aceitar-se como alguém falho e, finalmente, crescendo como pessoa.

***

Eu não acredito que não há caminhos para o subgênero e nem quero dizer esses são os únicos que prestam ou funcionam, ou que apenas a literatura nacional pode salvar. Existem outras histórias, algumas bem grandes, inclusive (vide As Crônicas de Gelo e Fogo) que trabalham esse subgênero de uma maneira se não menos agressiva, mais sábia. A questão com esse texto é que existe mundo além da superficialidade, da violência pela violência, do "fodão" pelo "fodão".

Nem vou entrar em detalhes como essas duas histórias se conversam não apenas na temática da fantasia sombria, mas também por serem conscientes de si mesma, pelos autores terem conhecimento profundo do que é esse subgênero, e trabalharem suas histórias em cima disso.

A fantasia sombria, se bem trabalhada, podem trazer conceitos maravilhosos. Mesmo maculada por obras e autores ruins, ela pode ter um bom tratamento. Pode voltar a ser uma boa literatura fantástica.

Você pode encontrar o Máscara Para os Mortos de M. P. Neves aqui e Lebre da Madrugada de Arthur Malvavisco aqui.

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