Já tem alguns meses que eu vejo um movimento utilitário dentro da literatura nas redes sociais. Quando falo utilitário, quero dizer de gente que busca ler o máximo de coisas possíveis no menor tempo possível porque o importante é a produtividade, é cumprir a leitura daquele livro ou saga logo para poder postar que leu ou comentar com alguém as coisas mais óbvias daquele livro.
Acompanho algumas bolhas nas redes, muitas delas relacionadas a "conteúdo" (eu odeio esse termo, mas aqui funciona como uma maravilha) e percebo que esse movimento é ainda mais forte dentro do meio literário. A gente tem a Netflix lançando todas as suas séries de uma vez, só para que as pessoas participem das conversas no mesmo dia, e se você assistir devagar, está arriscado a tomar spoiler (coisa que por si só já sou contra, mas isso é assunto para outro texto) e não participar das conversas, e ainda assim, no meio literário, é onde vejo esse movimento de utilitarismo muito mais forte. Por quê? Eu não tenho uma resposta, mas queria trazer uns questionamentos sobre isso.
Macetes de Leitura Para Tempos Líquidos
Todos os exemplos que vou citar aqui eu vi nas redes. São estúpidos demais, mas são reais, então vamos lá:
1) Pedir para IA resumir um livro capítulo a capítulo para dizer que leu o livro inteiro sem precisar perder tempo,veja só, lendo o livro;
2) Ler textos cada vez mais curtos não por curti-los de verdade, mas para poder cumprir o mais depressa possível uma meta de leitura irreal estipulada, geralmente, no começo do ano;
3) Pular blocos inteiros do texto. Não uma leitura dinâmica, mas pular parágrafos, ou capítulos inteiros, para "intuir" o que está sendo dito ali e ver a história avançando mais depressa;
4) Ler só diálogos, pular todo o resto do livro, inclusive pensamentos, descrições ou qualquer coisa que não venha com um travessão no início.
Assim, eu não sou ninguém para poder bater o martelo e dizer como cada um deve ler seus livros, mas se você não lê para curtir a leitura (e quando falo de leitura, não de história, quero dizer que o formato é tão importante quanto a trama sendo desenvolvida), mas para poder cumprir tabela, para poder fazer uma contagem no fim do ano e mostrar como lê muito, talvez a leitura não seja para ti. Você pode gostar apenas de acompanhar histórias, e aí, talvez, ler não seja o seu formato favorito. Existem séries, filmes, jogos, desenhos animados, quadrinhos, teatro, tudo contando narrativas em meios que talvez você se encontre melhor.
Mas digamos que a leitura seja o ideal para essa pessoa imaginária. Ela gosta dessas histórias. Ela gosta de ler e até lê relativamente rápido, mas pode ter problemas para entregar completa atenção, tem problemas de imersão ou qualquer fator externo. Isso é algo que você pode aprender a trabalhar devagar, talvez diminuir seu ritmo de leitura para se adequar ao seu método, voltar dois passos para trás para poder finalmente correr. Apressá-lo para criar produtividade, talvez, não seja o método ideal. O problema, acredito, não é só fazer uso de macetes para concluir o mais depressa possível uma leitura. É não refletir sobre isso, antes de tudo. Por que você está lendo assim? Porque prefere fazer uma leitura onde você não está aproveitando o que está fazendo apenas para, no fim, dizer que fez?
Eu acredito que entra muito, como qualquer coisa da cultura pop atualmente (sim, porque ler é pop, e talvez nunca tenha sido tão pop quanto agora), na hiper produção que temos, com serviços independentes, como Amazon e Wattpad, mas também na estimulação cada vez maior do consumo de produtos. Ler não é apenas prazer, é cumprir meta, é dizer que leu porque todo mundo está lendo aquilo ali, ou seu booktuber favorito, e livros se tornam cada vez mais parecidos com outros objetos de consumo. A diferença é que ele exige mais tempo para ser consumido. Diferente de uma jaqueta bonita que, morando numa cidade quente você não precisa, mas tudo te estimula a comprar e você compra e pode usá-la, talvez, numa festa noturna, diferente do lançamento da terceira temporada daquela série que todo mundo está falando, e você se sente tão estimulado por ver tantos prints no Twitter, Reels no Instagram, e pensa que você também deveria estar vendo, e então maratona ela em 2 dias, na velocidade 1,5 para poder assistir a nova temporada no lançamento, ler um livro exige mais que passividade, você deve ser ativo, e ativo por muitas horas. 8h costuma ser o tempo médio de uma série hoje em dia, mas livros cujo tempo leva 8h costumam ser curtos. Eles exigem 10h ou 12h de atenção contínua, e o mundo hoje em dia, seja por trabalharmos e estudarmos mais (ou seja, sendo produtivos em outras áreas da vida) ou simplesmente a hiper estimulação o tempo todo, não estamos tão aptos para dedicar com tanta constância.
Quando a literatura vira apenas conteúdo a ser consumido, esse tempo precisa ser cortado, ou deve se criar uma dinâmica para poder finalizá-lo em menos tempo para poder passar para o próximo conteúdo. Assim os macetes nascem. Não há qualquer reflexão sobre o que se está lendo ou sobre como se está lendo. Chegar na frase final e intuir o que estava acontecendo antes é o suficiente.
O Livro Como Objeto e a Literatura Como Conteúdo
Eu não sou um pesquisador para poder apontar como isso começou, esse texto é apenas opinativo, mas posso refletir um pouco não sobre seu início (que ficou mais forte de uns dez anos para cá), mas sobre certos sintomas.
Começo a sentir isso tudo muito mais forte quando o livro vira objeto de consumo. Assim como comprar um carro de luxo, o livro se tornou artigo para se ter em casa e ser bonito. Edições inúmeras do mesmo livro, capas duras, brindes, etc, livros que ficam cada vez mais bonitos e menos práticos para a leitura, isso tudo mostra um sintoma forte da transformação da leitura como algo banal, algo para ser bonito, virar objeto de cena, e deixa de ser algo significativo.
Como o bom capitalismo costuma ser, tirando todo o significado de alguma coisa para torná-lo apenas consumo.
Talvez isso tenha a ver com uma geração cada vez mais hiper estimulada ou a maneira que certas livrarias e editoras (em constante crise) encontrou para poder voltar a vender livros, ou nenhuma dessas coisas, mas o fato é que o livro e ler deixou há muito de ser o motivo principal de se ter um livro. E quando falo em ler, não falo apenas do processo de passar o olho pelas letras até formarem palavras, frases, parágrafos; falo de compreender e absorver o texto que está sendo lido.
Ler agora é como visitar um fast-food. Comida rápida e simples, pouco aproveitada, mas que alimenta.
E aí entra o óbvio, mais uma vez: pensar na maneira como consome algo (não só literatura, mas ela principalmente porque é o foco do texto) hoje em dia, talvez, seja tão importante quanto consumir. No momento em que você pega um café e abre um livro ou liga o kindle, e começa a sua leitura, é importante ter consciência de que está fazendo aquilo porque está buscando um fim no próprio texto e como ele se relaciona consigo mesmo, e não em fatores externos: ver o vídeo com spoilers do seu booktober favorito, tweetar dizendo que leu, colocar as 5 estrelas no Skoob.
Ler é Mais Que Ler
Como eu já falei ali em cima, ler exige mais do que outras mídias porque precisa que você seja ativo. Não que eu ache que outras mídias, como filme ou jogo, não exija o mesmo, mas é muito mais fácil você consumi-los de forma passiva que um livro. Talvez por isso a literatura ainda é uma coisa que a maioria das pessoas têm dificuldade, lembrando que no Brasil se lê relativamente pouco, e esses macetes sirvam para que elas consigam fazer algo que realmente dê prazer a elas. Não estou aqui para dizer a ninguém como se deve ler, apenas estou propondo uma reflexão.
Talvez pedir para a IA resumir a saga mais badalada do momento capítulo a capítulo não seja, de fato, leitura, apenas uma maneira de você conhecer a história logo. Isso não é ler.
Não acho que toda leitura precise ser edificante, isso também é utilitarismo da literatura, ela pode muito bem ter seu fim em si mesmo e no entretenimento, mas se até para se entreter você precisa forçar para ser produtivo, então talvez tenha algo de errado. Talvez você não esteja se permitindo se divertir o suficiente. Ou aprender algo novo. Não esteja absorvendo o que a história tenha para te contar. Está apenas consumindo sem parar algo, como o capitalismo adora fazer. Consumo sem reflexão, principalmente no meio da literatura, é a morte dela mesma.
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